Ficção ou não-ficção? E… pelo que parece, há ainda o tal novo género literário?
De uma forma geral, quando falamos de ficção referimo-nos a uma história imaginada, um enredo com contexto e personagens criadas para viverem nele; enquanto que, com a não-ficção, falamos de relatos factuais que se centram em eventos e pessoas reais.
No entanto, a diferença entre os dois géneros de criação que há décadas se têm mantido separados nas prateleiras das livrarias, tem vindo a esbater-se em anos recentes, dando espaço para dúvidas e discussões sobre os seus limites.
No episódio de hoje falo sobre os géneros literários que lemos, as suas virtudes, como nos conquistam e o que nos dão.
Bem-vindo!
As histórias de ficção são inventadas e originam da imaginação do autor. Chegam até nós na forma de romances, contos, mitos e lendas, histórias de encantar.
Se por vezes os enredos, cenários e personagens num livro de ficção até possam ser inspirados em factos e pessoas da vida real, os escritores utilizam-nos apenas como um ponto de partida para a construção das suas histórias.
A ficção trata de fantasiar mundos, objetos, pessoas… e recorre a um conjunto imenso de técnicas de narrativa para contar uma história da forma mais cativante possível. Recorrendo para isso ao drama, ao suspense, ao humor, à manipulação do tempo e do espaço, a tudo o que estiver ao alcance da criatividade para conseguir levar o leitor consigo, até o fazer esquecer-se de si próprio.
A minha preferência é pela ficção e é de longa data.
Foram livros de ficção que me conquistaram, me tornaram leitora e anos mais tarde, inspiraram a experimentar a escrita.
Assumo que o Onde cantam os Grilos é um pontualmente invadido pelas minhas memórias de infância, que usei, por exemplo, o hobbie dos meus primos de criar pequenas construções com pauzinhos de fósforos queimados, colando-os uns aos outros, pacientemente, até formarem uma figura definida.
Peguei nesse talento engenhoso que lhes admirava e emprestei-o à personagem do Fureca, que… e é aqui que lhe juntei a ficção... tinha por hábito incendiar as suas criações assim que as terminava.
Os meus primos nunca fizeram tal coisa, que eu tenha conhecimento, mas em miúda, sempre que olhava aquelas construções, as cabeças de fósforos enegrecidas alinhadas, era impossível não associar a elas a ideia de fogo e destruição como ameaça de coisas belas.
Até agora, tudo o que tenho escrito, é ficção. Talvez por ser tão libertadora, e permitir-nos… tudo! Ela fala ao espírito humano e mantêm-nos no centro da sua escrita.
A conceituada Harvard Business Review refere num artigo em prol dos benefícios de ler ficção:
“Quando se trata de ler, podemos assumir que a leitura para obtenção de conhecimento é a melhor razão para pegar num livro. No entanto, estudos sugerem que ler ficção pode trazer benefícios mais importantes do que não-ficção. Por exemplo, da leitura de ficção advém um aumento da acuidade social e uma capacidade aguçada para compreender as motivações do Outro. Ler não-ficção pode certamente ser de valor para obtenção de conhecimento, mas pouco contribui para o desenvolvimento de um objetivo menos óbvio: inteligência emocional.”
A ficção faz-nos sair de nós e sonhar, mas... existem também nas nossas estantes aqueles livros que nos falam num outro tom, mais sério e realista, igualmente com o poder de nos apaixonar, ainda que de uma outra forma.
Por contraste à ficção, a não-ficção (salvo a redundância), é factual e retrata eventos reais. Aqui incluímos livros de História, biografias, artigos de jornalismo, ensaios... ou um podcast literário!
Em dezembro, quando comecei este podcast, foi uma aventura neste contexto desconhecido - da voz e do som - mas também porque comecei a partilhar conteúdo de não-ficção, ao vir falar aqui daquilo que acredito ser a minha verdade sobre estes temas que me são tão queridos, os livros, as suas histórias e seus escritores.
Basta ouvir um episódio do podcast e é bastante óbvio que os meus velhos hábitos têm tendência a emergir e mais minuto menos minuto perco-me em monólogos a estilo de narrativa, mas, é uma influência no meu tom, porque a base é informação verídica, ou de opinião, e sempre que não é o caso, menciono-o.
Frequentemente, a não-ficção tem um estatuto mais elevado na consideração social; ela pretende ensinar-nos como o mundo funciona. Aliás, é bastante comum leitores dizerem: só leio romances, só leio mistérios, como se a sua preferência fizesse de si, e da sua leitura, menos relevantes.
De facto a relação entre os dois géneros literários não é igualitária, uma pitada de factos reais numa obra de ficção, como o caso do hobbie dos meus primos no Onde Cantam os Grilos, não a torna real, no entanto, uma ou duas invenções num livro de não-ficção pode destruí-lo, esvaziando-o de todo o seu propósito e credibilidade.
Ainda assim, há quem se proponha a ultrapassar as barreiras e as divisões destes dois géneros. Eles são escritores de não-ficção que, para tornarem as suas obras mais apelativas aos seus leitores, utilizam técnicas narrativas da ficção, numa nova tendência literária apelidada de não-ficção criativa.
O escritor de não-ficção criativa e o escritor de ficção têm muita coisa em comum: ambos utilizam as técnicas de narrativa, enredo, ritmo, tom e nuances, descrição de personagens e diálogo.
Existe muito mais que os une e divide, mas vou resistir a perder-me aqui nos detalhes. Resumo com um exemplo concreto: o livro de Truman Capote “A Sangue frio” é considerado o expoente desta área cinzenta que é a não-ficção criativa.
O autor levou a ousadia tão longe que fez surgir vozes que questionaram a veracidade do que relata na sua famosa obra, sobre a morte da família Clutter, no Kansas, EUA e os dois homens que os assassinaram em busca de uma fortuna.
Mesmo que cada vez seja mais difícil distinguir entre ficção e não-ficção - em especial quando se trata destes autores habilidosos na sua arte - lembra-te simplesmente disto: se relata a verdade, é não-ficção. Se molda a verdade, é ficção.
No balanço final deste debate sobre ficção e não-ficção, como seria de esperar, dois leitores facilmente argumentariam sobre as virtudes do seu género favorito. Mas vou aqui arriscar e tentar aqui concluir com uma proposta conciliatória:
Estes dois leitores têm muito a perder ao se restringirem aos seus respectivos géneros favoritos de forma permanente
Não faz mal ter preferências, por um género, desde que não se abandone o outro
Demasiada ficção vai prender-te num mundo de sonho e fantasia
Demasiada não-ficção enche-te a cabeça com a opinião de outros sem te permitir aventurares-te por ti próprio e arriscar até descobrires as tuas verdades
Na leitura, é variar para triunfar. Porque, se podes ter um bocadinho de tudo, porquê contentares-te com menos?
Nesta era da informação, de enorme disponibilidade e acesso a conhecimento e entretenimento, o que verdadeiramente se impõem a cada um de nós é o desafio da escolha.
Se todos competem pelo nosso tempo e atenção. Por que ler? Seja ficção ou não-ficção. Porquê escolher um livro?
A resposta é muito pessoal. Para mim, é porque um livro exige participação; seja ele de que género for, ele impele-nos a que sejamos ativos a imaginá-lo ou críticos em relação à ideia que nos apresenta; e também porque emprega qualidade ao tempo que lhe dedico; porque me permite definir o ritmo a que quero seguir na sua descoberta; porque é paciente e tolerante e ensina paciência e tolerância; porque um livro floresce no silêncio, que é bem tão raro.
Ler é um bom estado de alma, um bom lugar para se estar.
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