Para leitores ávidos, a possibilidade de os livros poderem confortar-nos, atenuar sofrimento, elevarem-nos o estado de espírito e trazer-nos até alegria... não é surpresa! A comunidade médica apelidou-o: biblioterapia; e nós, com as bibliotecas que temos por casa, já somos peritos em automedicação.
Claro que quando falamos do poder dos livros como forma de terapia, falamos na ajuda que eles nos dão na superação de dificuldades emocionais do dia-a-dia e a lidar com aqueles desafios existenciais que nem conseguimos expor por palavras.
É reconfortante saber que não é devaneio deste nosso amor - pelos livros e pela leitura-, que existe agora toda uma ciência que corrobora o que sentimos.
No episódio de hoje falo sobre biblioterapia e acabo num agradecimento, muito devido, a todos os escritores que li.
Bem-vindo!
Feiras de livros usados são um dos meus ideais de paraíso; personagens literárias que recomendam livros; clubes de leitura... recomendações de amigos, ou até de desconhecidos - porque ver alguém no metro que de súbito levanta os olhos de um livro e é óbvio que não faz ideia qual a paragem em que está, pode ser uma ótima recomendação para uma próxima leitura!
Para mim, o prazer da leitura começa logo na descoberta dos livros. Por isso, quando me cruzei pela primeira vez com o termo biblioterapia - e percebi que se tratava da existência de um ser humano, especialista, certificado, na recomendação personalizada de livros, que esta pessoa saberia dizer-me qual a leitura ideal para mim, num determinado momento da minha vida…!? Fantástico!
A ideia parece ter origens bem remotas, na Grécia antiga onde, consta, estava inscrito na entrada de uma biblioteca em Tebas: “local de cura para a alma”.
Pelo que li, também Freud foi um utilizador de literatura durante as suas sessões de psicanálise, que revolucionaram a psicologia ocidental; e depois da II Grande Guerra, muitas bibliotecas, principalmente através dos grupos de leitura, começaram a recomendar livros para ajudar as suas comunidades a lidar com traumas e a caminhar lentamente para uma nova normalidade.
Hoje temos as neurociências, que com a ajuda de tecnologia de ponta, conseguem realizar estudos e monitorizar os nossos cérebros em tempo real, os efeitos que a leitura tem nele, transformando assim, o que antes era empírico, em ciência. E também novas instituições e projetos inovadores; como a School of Life (fundada pelo escritor Alain de Botton) que parte deste novo conhecimento sobre os benefícios da leitura e se vem especializando em usar todo este poder - que nós leitores, bem conhecemos - para estimular, provocar, desafiar, reconfortar… através dos livros.
Se o conceito de biblioterapia te agradou, mas preferias uma versão sem o terapeuta, também é possível. Anota este título: “Remédios Literários”. É um livro de Ella Berthoud e Susan Elderkin, e nele podes encontrar um índice de maleitas de A a Z - começando em «Abandono» até «Zangar-se com o melhor amigo» com a respetiva recomendação literárias que te ajudará na cura. Autores como Tolstoi, Kafka, Mia Couto, Eça, Saramago e muitos outros, são os remédios prescritos que, segundo as autoras, ajudam a recuperar de: amores não correspondidos, crises de identidade, e até reumatismo e hipertensão em hipocondríacos. Podes ver que humor também não falta neste livro.
A título de desafio pessoal tentei pensar nas minhas próprias sugestões para alguns dos problemas referidos no índice do livro, mas só acertei em alguns dos mais fáceis: por exemplo Madame Bovary e Anna Karenina para o adultério e orgulho e preconceito para a arrogância. Com clássicos é sempre um bocadinho mais fácil, não é?
Da próxima vez que fores a uma livraria, não esqueças de espreitar “Remédios Literários”
Confesso que, mesmo que a ideia de um biblioterapeuta me conquiste à primeira impressão, sinto uma ligeira resistência que me impede de procurar um. Primeiro, tenho um certo medo, de que carregar um livro com a responsabilidade de me orientar ou dar respostas a uma questão específica, possa vir a alterar a forma como vejo “o livro”, o objeto em si, que me consegue trazer tanto conforto apenas por o segurar nas mãos. a procura, ativa, num livro por uma ajuda específica, pode levar à desilusão (como em tudo na vida em que colocamos expectativas desmesuradas) ou frustração por não conseguirmos absorver deles o que é suposto. Porque, há que considerar a singularidade da experiência de leitura - que já referi em episódios anteriores - que torna o encontro de cada leitor e cada livro, único. O mesmo livro tem significados distintos para diferentes pessoas. Um exemplo comum: Quem de nós nunca foi desiludido por um sucesso de vendas, que toda a gente adora e recomenda!? E nós nem conseguimos sequer terminar de o ler.
Hesitações e medos pessoais à parte, sem dúvida que a biblioterapia terá um efeito terapêutico em qualquer pessoa que não tem o hábito de ler, e sendo evidentemente um incentivo à leitura, eu assino por baixo.
No que respeita aos especialistas - nesta que é uma terapia com um grau de subjetividade tão grande quanto as prescrições possíveis - existem diversas filosofias cruzadas e divisão de opiniões, em especial, sobre qual deve ser a preferência dada na recomendação de livros: ficção ou não ficção?
O que li fez-me olhar para as minhas estantes e avaliar as preferências que tenho de ambos os géneros literários, sob esta perspetiva de ficção Vs não ficção, mas isso… fica talvez para um próximo episódio...
O que tiramos nós, dos nossos livros? E se não é tanto quanto desejamos, quanto nos dizem ser possível, ou em certas ocasiões em que simplesmente não os compreendemos, acontecerá isto porque somos maus leitores?
Há alguns anos ouvi alguém dizer que um mau leitor é como um mau tradutor. Achei curiosa a comparação, talvez porque me revejo em ambos os papéis - leitor e tradutor - mas levanta um tema polémico - o pressuposto de que existem maus leitores - que não acredito que existam… existem sim, maus livros; e também combinações erradas, de um livro errado nas nossas mãos, mas nunca, maus leitores.
Prefiro aquela analogia entre o livro e uma pauta de música - pesquisei-a e julgo ser da escritora Rebecca Solnit (não tenho a certeza) - mas ver o livro como uma pauta musical, que cada leitor tem o poder de invocar e interpretar, numa espécie de, sinfonia literária, parece-me perfeito.
Virginia Wolf disse, sobre a relação do leitor para com o escritor: “sê o seu companheiro de trabalho, o seu cúmplice.” Cumplicidade é a palavra que também escolheria para retratar esta experiência tão incrível, entre leitor e escritor, que torna possível a arte da leitura.
Não consigo imaginar o quanto tenho a agradecer a todos os autores que li; digo-o pelas razões mais óbvias, por tudo o que eles criaram, me ensinaram e fizeram sentir e uma outra razão em especial que, confesso, me envergonha. Refiro-me aos livros que esqueci. Aqueles livros que, sem saber explicar, como ou porquê, se esvaneceram da minha memória, e a não ser que surjam no meio de uma conversa ou me sejam trazidos à atenção de alguma outra maneira, esqueci-os.
Ainda assim, quero crer que de alguma forma, eles continuam a existir em alguma parte de mim e, em conjunto com todos os outros, todos os livros que li… me dizem: tu és o que és, e isso é bom, mas vê também tudo aquilo que poderias ser.
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