Neste segundo episódio do podcast, deixa-me dizer-te desde já... que também estou empenhada em valorizar as coisas mais simples e tudo aquilo que é importante e nos permite continuar, tal como escreveu Fitzgerald no seu maravilhoso Gatsby: barcos contra a corrente.
Nestes dias recentes de tanta incerteza - que vieram transformar as nossas rotinas - navegamos entre marés de otimismo pela manhã e ceticismo à noite, num esforço incessante para não perder o momento presente, e vivê-lo... com arte… uma especialidade nossa, de escritores e leitores, que conseguem invocar refúgios das palavras e estão sempre dispostos a reinventarem-se, em mais um livro.
Como o fazemos..? Bem se sabe que: respostas a perguntas complicadas, nunca podem ser simples, mas... vamos lá tentar algumas hoje.
Vou falar aqui de: novas perspectivas, de lembrar a esperança nas palavras de Albert Camus e há até um pequeno desafio para ti, se tiveres coragem para o aceitar. Vamos lá!
Quero começar por defender uma palavra: rotina.
Ela não é vilã. Ela tem - como todas as outras palavras - uma vida pública e está aberta a interpretações. Não vou aqui citar o dicionário, porque começaríamos pela definição do que já sabemos: Sim, andamos imersos no nosso quotidiano, e - culpa da rotina - acabamos por deambular pelo dia-a-dia, ausentes de nós, num transe hiperativo que nos impele para sermos produtivos e garantir que cada minuto do dia, conta… e conta, para o quê? Ora, isso é que nem sempre é claro.
É como se a rotina formasse uma camada superficial, que assenta sobre, a outra versão de nós, aquela outra personalidade mais rica e profunda, que, essa sim, nos retrata como um ser humano único, precioso, digno de atenção e cuidado. À semelhança daquele livro incrível que adoramos ler, com uma capa medíocre.
E é este um reflexo injusto que pode fazer-nos sentir prisioneiros? Em muitos dias, sim, sem dúvida que nos faz querer deixar tudo e perseguir o sonho, despedir o chefe, entrar no avião, inspirar o calor tropical, até vender cocos…! Qualquer opção, parece melhor, do que ter de repetir o dia anterior. Talvez por isso - e porque é cada vez maior a diversidade de livros e palestras sobre desenvolvimento pessoal, que nos apresentam tantas opções de vida que aparentemente estão ao alcance - são já poucas as coisas que nos conseguem arrancar da nossa rotina - com violência suficiente - e despertar-nos para as virtudes dela; para tudo o que nos oferece.
Não foi isto mesmo que marcou 2020? Uma interrupção abrupta das rotinas e um medo desconhecido que surgiu da possibilidade de as perdemos!? Pela primeira vez na vida senti pena de não poder ir ao ginásio. Ou quase. Mas sem dúvida que estes dias conturbados de incerteza, que temos atravessado em conjunto, me trouxeram uma nova perspetiva das rotinas. Quando - há alguns meses - fomos roubados deste refúgio das rotinas simples, das pessoas que, até então, nunca nos tinham faltado, das tarefas que nos ocupavam, novas realidades vieram tomar o seu lugar, algumas delas poderosas, como a solidão.
Até então estávamos ocupados e o estar ocupado, vinha preenchendo o tempo, e justificando não confrontar dificuldades pessoais com honestidade. Valter Hugo Mãe utilizou a metáfora do espelho, na entrevista que deu ao Expresso - que achei perfeita. - Ele refere que esta solidão recente; passo a citar :“é como um espelho diante de nós, um modo de nos conhecermos.” Ele refere que, quando privados do espelho que são os outros - todos aqueles que nos rodeiam e que refletem uma imagem que temos de nós - fomos deixados, sem distrações, com o espelho, que nos reflete de dentro. Esta é uma entrevista muito interessante, que vale a pena ouvir, e vou deixar-vos o link no blog.
Não há mais onde viver, senão no momento, e como nós mesmos. Quando não percebemos nada de coisa nenhuma e precisamos de uma aproximação ao que nos é tão estranho, para compreender os outros, a nós próprios, é neste ponto que as histórias que lemos e escrevemos - aqueles outros mundos compostos pelos livros, a escrita, as várias artes - todos eles criam janelas de possibilidade e aproximação.
Escrevo para explicar um pouco tudo isto a mim mesma, para me aproximar de sentimentos. Para criar pequenos momentos daquela liberdade de poder existir em outras pessoas e viver vidas que nunca ficariam ao alcance de outra forma, senão através da minhas personagens, ou das histórias dos outros. Cada livro, meu ou de outro escritor, é uma possível explicação do que escolhemos ver no que nos rodeia, uma validação ou desafio às decisões que tomamos. E neste exercício de proximidade de ideias e sentimentos - que existe num livro - podemos ficar mais perto dos outros e até, quem sabe, de nos tornarmos quem acreditamos ser.
É a magia da escrita! Já pensaram em experimentar?
Sugiro começar pelo mais difícil, e se o conseguirem, a partir daí, só vai ficar mais fácil.
Deixo então aqui o desafio:
Escreve sobre a rotina de alguém de quem não gostas. Alguém que neste momento desperta o pior que há em ti. Quando começares a observar mais de perto e atentamente, vais começar a ver o mistério nessa pessoa, e é aí que a magia começa. Senta-te com papel e caneta em mão - precisas de cheirar a tinta da caneta - e trata de construir uma história, esta personagem - o mais aproximada possível da realidade, argumenta na perspetiva, e pelo interesse, do teu inimigo. O perfil público desta personagem pode moldar a forma como interpreta e responde ao presente. Mas a sua narrativa privada - a história, em que esta personagem acredita, e que agora vais começar a compreender - molda a forma como esta se vê, e essencialmente, quem se tornará no futuro.
Experimenta. A fronteira, entre um herói e um vilão, pode bem estar na forma como contas esta história. Eu gostava de saber o que descobriste. Se quiseres partilhar comigo, já sabes o email: mariaisaac.pt@gmail.com
Camus escreveu: “No meio do inverno, descobri finalmente, que havia em mim, um verão invencível.”
As citações de grandes escritores são sempre fonte de consolo. É como se eles fossem aquele elemento da nossa família - a avó ou tio favoritos - sábios e pacientes - que gostaríamos de ter por perto, para longas conversas, mas que a maioria de nós, não teve a sorte de ter, por isso, adotamos os escritores. Mas apanhados nesta tempestade de 2020, é fácil esquecer as palavras inspiradoras de Camus e o ciclo da natureza, que um inverno implica que depois dele se vai seguir uma primavera, e a existência de um verão maravilhoso depois dela.
A cultura está a sofrer, e ainda assim, muita arte foi criada nestes últimos meses. Contributos incontáveis para uma memória coletiva de tudo isto que estamos a viver. Como tantas vezes acontece com a arte. Talvez só mais tarde, apenas em retrospectiva, seja possível perceber o quão importante é este contributo. Uma coisa é certa para todos nós, o presente está a fazer-nos sofrer e ele vai parecer bem diferente quando o olharmos do futuro, da primavera. Sem dúvida que vamos ver erros, mas toda a gente sabe que é bem mais fácil viver em qualquer outro tempo, que não seja este preciso minuto.
O que fazer, então, deste momento em particular? Colocá-lo em contexto. Ele nunca será perfeito - este instante no tempo, nem nós, que o vivemos - isso é uma limitação, mas resta sempre a possibilidade de experiências e sentimentos genuínos. Mesmo que seja tristeza. Ela também tem dignidade em si mesma, e pode desvendar-nos tal como qualquer outro sentimento. Eles são todos professores na mesma escola. Felizmente para a arte - para a escrita - a vida é complicada, misteriosa, difícil de compreender, e com possibilidades infinitas de interpretação... para quem estiver disposto a criá-la.
E se estás entre eles: Escreve sobre o que sabes. Escreve sobre o que não sabes. Estas são as duas sugestões mais repetidas para quem começa a escrever e procura: “encontrar a sua própria voz”, como se costuma dizer. Eu já comecei há algum tempo e ainda levo estas duas máximas bastante a sério. Interessa-me a vida, para a viver, e escrever, para a compreender. Somos todos necessários, porque somos todos únicos, e cada época cria o seu próprio tom que devemos interpretar - e é suposto ser esse o lugar de um escritor em tempos turbulentos. A abraçar a incerteza e contribuir para uma superação.
No seu discurso de aceitação do Nobel, Saramago, disse sobre o seu avô (um homem simples, contador de histórias): “(...) era capaz de pôr o universo em movimento, apenas com duas palavras.”
Então, vamos seguir-lhe o exemplo: Faça-se uso, das palavras.
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