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  • Writer's pictureMaria ISAAC

Conto de Natal: "A breve história de um longo dia"

Um conto de Natal do universo literário da "Odisseia das Pequenas Coisas".


Neste conto irás encontrar as tuas personagens favoritas dos "Onde Cantam os Grilos"; "O Que Dizer das Flores" e "Quantos Ventos na Terra".





A breve história de um longo dia



Existem dias especiais, em que logo pela manhã, naquele instante encantado à saída do sonho, entre o acordar e o abrir de olhos, queremos saltar da cama para começar a viver.

Era Natal. Ana Vaz esgueirou-se dos braços do homem que a tentou prender à cama por mais uns minutos, saltitando em bicos de pés, com o entusiasmo de uma personagem de conto de fadas.

— Onde está a minha prenda? Onde está a minha prenda? 

Baltazar observava-a, ansiosa por descer até à cozinha, rodopiando o vestido novo de inverno, de meias grossas, abraçando-se ao casaco de malha, e sorria só por a ver sorrir. Ele prometera-lhe um presente inesquecível, talvez o melhor de sempre e ela correspondeu com um entusiasmo à altura das expectativas criadas. Aquele era o primeiro Natal que passavam juntos, juntos como quem finalmente vive o grande amor da sua vida.

A casa, toda a Herdade e o lago imenso que lhe dava nome, acordavam com eles em mais uma manhã de inverno. Era o mesmo cenário de muitos outros natais longínquos que ambos viveram ali, felizes, em infâncias tão distintas; Ana a bela herdeira da família Vaz, Baltazar o bebé orfão anónimo, diferente com a sua pele escura, que ninguém sabia de onde viera, como fora ali deixado e a quem decidiram acolher na família sob o nome Baltazar, Formiga para os amigos.

Os dois cresceram ali, mas mesmo que lado a lado, sempre tão diferentes. Baltazar abraçara tudo quanto estava ao seu redor, animais, gente ou natureza, fazendo da Herdade do Lago o seu mundo encantado, Ana contentara-se com observar apenas, cuidadosa, astuta. Talvez tenha sido essa atenção dela, aos sinais e subtilezas do mundo ao seu redor, que a ajudaram a sentir há vinte anos a mudança dos ventos, a ver as nuvens negras no horizonte da família, de todos eles, a preparar-se para sobreviver quando, por fim, chegara a tempestade de uma tragédia súbita, imensa e longa: a morte dos seus dois irmãos, depois dos seus pais e por fim uma travessia solitária pelos anos a sós na Herdade do Lago como a última herdeira dos Vaz.

Ela recusara-se a partir, ele precisou de fugir.

Era a Herdade amaldiçoada e o lago encantado, profetizavam as lendas misteriosas que o povo tanto gostava de contar em histórias para crianças.

Pela força da vontade, ou teimosia, Ana Vaz mantivera a herdade viva durante mais de vinte anos, todas as terras que a vista alcançava, que eram só dela, mas que partilhara com quem as quisesse trabalhá-las. A natureza vivia, pelos cuidados de muitas mãos, homens e mulheres; mas quanto à alma da Herdade do Lago, essa foi adormecendo. As noites silenciosas, os dias com demasiado espaço, menos luz. Tomara-a uma imobilidade imperceptível, dormência de amor, uma quietude submersa sob os muitos afazeres da lida nas terras, do cuidado dos animais, que se instalara com ausências, pequenas distrações, hábitos abandonados, tradições interrompidas.

Ana não se apercebera de tudo isto, mais preocupada em sobreviver, como por norma acontece e assim nos ensinou a natureza, talvez satisfeita com o essencial, confortada com pequenas vitórias. Mas Baltazar, no seu regresso à herdade, vira o quão silencioso e inerte se tornara o cenário idílico da sua infância e agora estava decidido a aproveitar todas as oportunidades para resgatar a Herdade do Lago do destino das suas lendas mais negras, a reconstruí-la para um futuro que já começara naquele amor inesperado que os unira aos dois.

Aquela seria uma dessas ocasiões, um dia de regresso de tradições, o seu presente especial para Ana.

Ao deixarem o quarto de mãos dadas, ouvia-a a murmurar uma melodia alegre ao longo do corredor. «É Natal, é Natal…»

— Está na cozinha? — adivinhou Ana, curiosa.

Ele apenas anuiu, mantendo o segredo durante mais alguns passos, escada abaixo.

Na manhã ao redor de ambos, os fantasmas espreguiçavam-se, também eles curiosos, seguindo o brilho nos olhos da sua herdeira. Eram fantasmas de pessoas felizes que viveram momentos demasiado tristes, os antepassados dos Vaz — tal como Ana e Baltazar  —, também apaixonados por aquela herdade — talvez maldita, talvez abençoada — e pelo grande lago que os espelhava a todos numa história antiga, desde tempos que já ninguém conseguia acompanhar, ficando, entretanto, entregue aos encantos da imaginação.

Era Natal, e naquele dia tudo seria diferente porque as crianças estavam prestes a voltar. Esse era o grande plano.

A doce Rosarinha não partilhara do entusiasmo de Baltazar quando comentou com ela a ideia de recuperar a tradição. O rebuliço só iria complicar-lhe a organização das refeições natalícias, as compras, os linhos, o trato da loiça delicada que só saía do armário da sala duas vezes por ano, na Páscoa e no Natal, que mesmo sem ser usada, precisava sempre de uma lavadela. 

— Tu também gostavas — lembrara-a, quando a empregada se lamentou por toda a confusão que traria aquela ideia peregrina. — Eras quem ficava mais alegre com a cozinha cheia de gente.

— Oh, mas os tempos são outros e os catraios agora são uns demónios — contestara Rosarinha, temendo pela segurança das fitas coloridas e bolas cintilantes com que os dois tinham enfeitado a nova árvore de Natal e decorado toda a cozinha. — No tempo da D. Idalina, as crianças marchavam a passo de soldado, entravam e saíam desta cozinha sem se lhes ouvirmos sequer um pio.

Ele riu, sem concordar.

— Porque a D. Idalina, que Deus a tenha em paz, recebia criancinhas de colher de pau na mão, enquanto tu… é com um sorriso derretido e lágrima no canto do olho, por os veres a empanturrarem a barriga com a tua comida.

Rosarinha rendera-se então com estas duas trocas de argumentos simples e acabou a ajudá-lo com a alegria doce que colocava em tudo o que fazia. Iriam recuperar a tradição. A novidade foi espalhada pela vila, e todas as casas nas redondezas: no dia de Natal, a Herdade do Lago abriria novamente as suas portas para receber as crianças, a sua cozinha recheada numa fartura de iguarias, doces, bolos e guloseimas nunca vista em nenhuma outra altura.

Ao deparar-se com uma cozinha a abarrotar de decorações e comida, Ana Vaz não precisou de mais de dois segundos para adivinhar qual era a sua prenda, superar a incredulidade e saltar para abraçar e beijar os dois conspiradores.

— Obrigada, obrigada, obrigada! Vai ser o melhor Natal de sempre! — festejou.

Defensora do trabalho de equipa, Ana resolveu dar a sua contribuição, despertou o lume da lareira com grandes sopros, retocou todas as decorações, que já estavam perfeitas, fez uso dos seus escassos dotes culinários. Rosarinha agradeceu-lhe, ainda que ela a atrapalhasse mais do que os seus próprios nervos, sensibilizados pela correria da época festiva.

— Vai ser um longo dia! — festejou Ana.

— Como manda a tradição — responderam-lhe em coro os outros dois.

Baltazar, o vigilante da sua felicidade, observava-a com o sorriso que já lhe conhecia, aquele, sereno, só por a ver sorrir. 

Contava a lenda que tudo começara com o primeiro dos Vaz a chegar àquele canto do mundo, o antepassado que ninguém sabia de onde viera, nem lembrava o nome, e por isso lhe chamavam apenas o Velho Vaz. Era dele o primeiro retrato na linhagem de antepassados que percorria a parede do corredor, e fora ele quem, dizia-se, certo dia cruzara caminho com uma criança que pedia um pouco de pão a quem passava. Ao vê-la, o Velho Vaz, bom homem cristão e generoso, içara a criança para a garupa do seu cavalo e logo nesse dia sentara-a à sua própria mesa, partilhando tudo o que tinha e também o seu sonho, o de um dia vir a ser dono de terras, árvores, animais e flores, de poder cuidar de todos eles e das gentes que o ajudariam a fazê-lo todos os dias. A criança ouvira-o, intrigada, e no final, apontando para o lago que se via através da pequena janela, perguntou: 

— E o lago…? — pois como poderia um homem ousar querer tanto e não desejar o tesouro a poucos metros da sua porta.

O Velho Vaz sorriu perante a visão mais bela da sua vida, a luz a flutuar nas águas cintilantes. 

— Esse é de todos.

A palavra correra pelas terras, a história de generosidade, encantando os pobres como uma flauta mágica e, no dia seguinte, dia de Natal, uma fila de crianças alinhara-se à porta da cozinha do Velho Vaz. Apesar de então ele ser ainda apenas um homem pobre com um sonho, a olhar o lago da sua pequena janela, o Velho Vaz oferecera uma romã a cada mão que lhe foi estendida e dissera às crianças que poderiam voltar no Natal seguinte e em todos os outros, porque ali encontrariam sempre algo para elas.

As gerações seguintes dos Vaz cumpriram a promessa, cada vez mais ricos e cada vez mais generosos, apenas Ana não fora capaz de o fazer depois da morte trágica dos irmãos. Mas agora, Baltazar e Rosarinha tinham-se superado nos esforços e compensado os anos de interrupção, a cozinha ganhou a sua própria árvore de Natal, a maior jamais vista, decorada com fitas, bolas, laços coloridos e, pela primeira vez, luzes; debaixo dela, presentes embrulhados, a papel verde para os meninos, a papel vermelho para as meninas; sobre a grande mesa de madeira, um banquete.

Ana olhava ao redor com gosto, sorria para tudo e para todos.

— Está perfeito — sussurrou quando se ouviram vozes a aproximarem-se vindas do exterior. — No próximo ano, temos mesmo de te vestir de Rei Mago. 

Baltazar riu com um encolher de ombros. 

— Farei jus ao meu nome — prometeu, solene —, mas tens de manter a promessa de que nunca haverá um Pai Natal.

— Nunca haverá um Pai Natal na Herdade do Lago — garantiu-lhe com um abraço e um beijo, que fizeram corar Rosarinha.

Eles eram um amor que ninguém vira chegar. Ninguém, exceto Rosarinha, que vira passar pelas suas mãos as cartas trocadas durante os anos; e no instante em que Baltazar voltou à Herdade do Lago e aqueles dois se encontraram olhos nos olhos, pela primeira vez adultos naquela casa, teve a confirmação da história de amor improvável que D. Crisálida, uma velhaca vidente e assustadora, lhe segredara havia mais de trinta anos. Ao ouvi-la, Rosarinha não acreditara nela, pois como podia acreditar em tal presságio, de que o pequeno Formiga, orfão, ainda mais pobre e desamparado do que todos eles, poderia um dia resgatar o sorriso da última herdeira dos Vaz, quebrar uma maldição de solidão e cuidar de todos eles? E se tal fosse verdade, porque lhe confiaria a si, uma pobre empregada, medrosa e infeliz, tamanho segredo? Agora, ao olhar para trás, era-lhe tão fácil perceber tudo, perceber que seria ela quem ficaria a cuidar de Ana durante aqueles últimos anos, a impedir que a solidão se instalasse, ela quem insistiria com Ana e Baltazar para que os dois continuassem a responder às cartas um do outro, assegurando-lhes que as muitas folhas escritas não seriam recebidas como um incómodo, mas sim gestos de amor em dias difíceis, conforto, um motivo para continuar a viver. Rosarinha não podia estar mais orgulhosa por ver agora os dois juntos, finalmente, e as tradições a regressarem em dias felizes.

Como brisa de tempestade, chegaram as primeiras crianças, entrando na cozinha, tímidas pela mão das suas mães, mas cada vez mais elétricas à medida que se aglomeravam a conta-gotas ao redor da mesa. A primeira gargalhada foi como o trovão que Ana Vaz tanto esperara ouvir. O silêncio da Herdade do Lago foi finalmente vencido e ela riu com a explosão do som. Todas as tentativas da tímida Rosarinha para conter as corridas desenfreadas, deter as chuvas de perdigotos que disparavam migalhas entre os dois lados da mesa, ou limpar fosse o que fosse, eram desincentivadas pela senhora da Herdade do Lago, encantada por ver preenchidos os grandes espaços à sua volta, deixados vazios pela ausência de uma família.

Entre a confusão, Baltazar sentiu-se observado, como última rabanada no prato, assim que Catalina lhe pôs os olhos ávidos em cima. A sua jovem pupila, registada com o cartão de  leitor Nr.1 na biblioteca que ele fundara e dirigia, disparou na sua direção logo que cruzou a porta, urgente, e teimosa, na missão que incumbira a si própria há mais de uma semana.

— Já terminei! — disse ela, exibindo um caderno sofrido de folhas pautadas encarquilhadas.

Ele recebeu-a com o sorriso habitual, a calma que tentava amortecer a energia criativa e literária.

— Não és um bocadinho crescida para estares aqui? Crianças até aos dez anos — relembrou a indicação no convite que fizera circular pelas terras vizinhas.

— A minha tia pediu-me para o trazer — apontou Tico, o seu primo, que ela deixara à sua própria sorte entre as outras crianças da vila ao redor da mesa.

Catalina ignorou a sobrancelha torta de Baltazar, que denunciava a resposta como a desculpa esfarrapada que era para conseguir falar com ele mais uma vez, sobre o mesmo assunto que perseguia obstinadamente.

— É um conto natalício sobre as romãs! — continuou Catalina com entusiasmo redobrado, e pegando numa da fruteira sobre a mesa, juntou-a ao caderno, como se juntos, folha e fruto, tornassem a proposta mais apetecível.

— Ainda estou a pensar…

— Fala da tradição das romãs no Dia de Reis — interrompeu-o. — Encontrei um texto do Teófilo Braga: “Dia de Reis deitam-se três bagos de romã no lume para o ter aceso, três bagos na caixa do pão e três no bolso do dinheiro para ter dinheiro e pão.” Ele fundamenta o meu. É jornalismo! Tal como disseste.

— Parece muito interessante e oportuno — elogiou-a, tanto pelo esforço como pela paixão literária —, mas ainda estou a pensar se…

— Claro que vamos aceitar! — Afirmou Catalina, arrancando a folha do caderno de argolas tortas e apresentando-a frente aos olhos como uma dívida pendente de cobrança urgente. — Este povo precisa de cultura — sussurrou-lhe a estilo de enfermidade alheia muito necessitada de cura.

Juntos, olharam em redor, a algazarra na cozinha confirmava tanto a convicção de Catalina como as grandes dúvidas de Baltazar sobre a questão que os dividia na última semana: aceitar, ou não, a proposta do presidente da junta de freguesia para fundar um jornal em Mont-o-Ver.

— Prova um bilharaco para vermos se é possível adoçar-te um bocadinho a alma — riu ele, aceitando a folha escrita a letra adolescente e trocando-a pela iguaria de abóbora frita.

Catalina trincou-o de imediato, o que não a impediu de continuar a falar de boca cheia. — Já tenho uma lista de temas, não te preocupes que não nos vai faltar o que escrever. 

— Não dúvido — murmurou.

— Vou escrever até me sangrarem os dedos — prometeu-lhe, enquanto os lambia pegajosos de açúcar e canela. — Esta terra nunca mais será a mesma.

— Não dúvido — repetiu Baltazar, sorriso um pouco resignado, mais temeroso do que nunca.

Os últimos chegaram atrasados, como sempre, sete crianças numa marcha de patos visivelmente alinhados a contragosto, liderados por Zé Mau, adolescente com cara de poucos amigos, e no final Barbicha, o descontraído bem-disposto que fechava a fila a ritmo de assobio natalício. Eles eram o bando dos canaviais, crianças vindas do bairro mais pobre e longínquo, esquecido lá para os lados dos campos alagados, os que mais precisavam, e menos queriam estar ali. Foram entrando na cozinha já cheia, ignorados pelos olhares das mães das crianças da vila no desdém habitual. Mas a alegria de Rosarinha, a doce cozinheira, ao ver o filho chegar disfarçou a hostilidade do povo da vila. Zé Mau deixou-se abraçar pela mãe e aproveitou a oportunidade para devolver o desdém, com um olhar desafiador, às mulheres, e um especial a Catalina que por um instante deixou o seu caderno de argolas tortas e de editar o seu texto, já que os dois nunca perdiam a oportunidade para trocarem um insulto camuflado e manter de boa saúde o seu ódio de estimação de há tantos anos. 

— Agora, sim, é Natal! — festejou Rosarinha, puxando também o sobrinho para o abraço.

Mata-Mata, rapaz pouco dado a afetos e com urticária ao toque de pele humana, rosnou ao ser arrastado pela tia, no entanto, não fugiu.

Com a cozinha sobrelotada e tantas conversas cruzadas que mais parecia que uma magia negra de Natal a transformara num galinheiro, Ana Vaz não podia estar mais radiante. Apenas os membros do bando dos canaviais esperavam em silêncio, olhos em todo o lado, narizes impregnados de cheiros deliciosos e bocas salivadas, mas fechadas.

— Toda a gente de bico-calado — essa fora a ordem de Zé Mau ao saírem do bairro. — E ninguém pestaneja sem eu autorizar.

Fora uma ordem que não deixara dúvidas, e eles quase nunca desacatavam uma ordem do líder do bando. 

— Porque temos d’ir outra vez a essa merda? — Contestara Mata-Mata a ordem do primo.

— Porque se não aparecermos, a minha mãe vem buscar-nos pelas orelhas.

Mata-Mata limitara-se a resmungar com um «Assim que deia, vou pôr-me no caralho de lá para fora, aviso já!», e também ele, daquela vez, acatara a ordem.

Ali estavam todas, as crianças da vila, as do bairro, finalmente a cozinha repleta e a tradição retomada.

— Venham buscar as vossas prendas — pediu Ana, junto à árvore de Natal.

Do grupo do bando dos canaviais, os irmãos Marcolino, tão felizes quanto três cães hiperativos, foram os primeiros a abandonar a disciplina e lançaram-se às primeiras caixas que conseguiram pôr mãos em cima. 

Ana Vaz ainda tentou alertá-los, quando um deles escolheu um embrulho em papel vermelho, destinados às meninas, mas o demónio da destruição já se apossara de todos por contágio, na euforia de rasgar papel.

 — Oh, Barbicha, esta é para ti — riu Mata-Mata, arrancado a caixa das mãos do Marcolino que estava confuso por a sorte lhe ter dado uma boneca acompanhada por meia-dúzia de escovas, em vez do conjunto de carrinhos igual ao que calhara aos seus dois irmãos.

Barbicha, rapaz discreto, de cabelo sempre bem penteado e uma penugem de bigode, não aceitou a provocação do comentário de Mata-Mata, o terrorista, apenas franziu a sobrancelha, e continuou a penicar a sua rabanada sem pressa. 

— Eu também querer a minha — balbuciou Badé, um dos meninos mais pequenos que procurava, entre a confusão, uma caixa ainda fechada que pudesse vir a ser sua.

— Quando aprenderes a falar em condições — Mata-Mata deu-lhe um encontrão e foi garantir que nenhum azeiteiro, entre os putos da vila, ficava com as prendas deles, já que Barbicha era um imprestável preguiçoso e o seu primo Zé Mau estava mais preocupado com parecer bem educado, a comportar-se como um peixe morto.

Trocas de presentes foram levadas a cabo entre rapazes e raparigas para satisfação geral. A selvajaria do bando dos canaviais, que depressa esquecera a ordem do seu líder, Zé Mau, só encantava ainda mais Ana. E foi só então, quando a árvore se esvaziou de presentes e a cozinha conseguiu ganhar um pouco de espaço, que ela a viu pela primeira vez. Era como um pequeno fantasminha branco, a menina albina de quem já ouvira os empregados falar; falava-se em magia branca, em profecias, em vozes do outro mundo, dons inexplicáveis e a ignorância mantinha o povo cativo do medo.

A menina viera com o grupo do bando dos canaviais, crianças cujos pais não tinham tempo ou interesse em acompanhar os seus filhos até ali, e estava sozinha à beira da árvore de Natal, tão pequena quanto uma criança de seis anos poderia ser, rosto elevado, a observar a estrela no topo, cabelos brancos escorridos, pele quase transparente. A curiosidade levou a melhor de Ana, e ela baixou-se à mesma altura da menina.

— Olá — disse-lhe baixinho.

A menina voltou-se e o espelho dos seus olhos metálicos desfocou o mundo ao redor delas. Num primeiro instante, Ana temeu que, se lhe tocasse, ela desapareceria.

Badé, um pouco maior, mas igualmente silencioso e tímido, juntou-se a elas, algo curioso, meio fugido do terrível Mata-Mata.

— Eu sou a Ana, e vocês? — perguntou sorrindo para os dois. — Como se chamam?

Chamar-me Badé — sorriu ele de volta, mãos nos bolsos com rebordos de migalhas dos dois bolos que roubava, um para a sua mãe que nunca saía de casa, outro para a irmã que já era grande e não podia vir ao Natal na Herdade.

A menina pareceu precisar de pensar na resposta, ou estar apenas encantada com a visão do rosto de Ana Vaz, tal como ela estava com o seu. 

— Cuca — disse, finalmente.

— Cuca. Gostas da árvore, é?

Voltou a olhar o topo e Badé imitou-a. 

— Da estrela — sorriu.

— Bonita — comentou Badé, olhando toda a árvore e tocando-a com a ponta dos dedos, fazendo algumas bolas balançar.

— Há muito, muito tempo — segredou Ana Vaz o início da lenda —, na noite de Natal, existiam três árvores junto do presépio: uma tamareira, uma oliveira e um pinheiro. 

Cuca e Badé voltaram toda a sua atenção para aquela voz encantada, rosto curioso com o que estava prestes a revelar-lhes.

— Ao verem o Menino Jesus nascer — continuou Ana, pegando na pequena estatueta do menino que estava no presépio —, as três árvores quiseram oferecer-lhe um presente.

— Qual presente? — perguntou Cuca, aceitando a pequena figura do bebé rosado em porcelana que lhe passava para a mão.

— A oliveira foi a primeira a dar a sua oferta, e presenteou o Menino Jesus com as suas melhores azeitonas. A tamareira foi logo a seguir e ofereceu-lhe as suas tâmaras mais doces. Já o pinheiro… como não tinha nada para oferecer, ficou muito triste.

Os olhos de Cuca perderam brilho pela tristeza do pinheiro, Badé parou expectante e Ana compensou-os colocando ainda mais amor na voz da sua lenda.

— As estrelas do céu, ao verem a tristeza do pinheiro, que não tinha o que oferecer ao Menino Jesus, decidiram descer à terra e pousar sobre os galhos, iluminando e embelezando o pinheiro. E quando isto aconteceu… o Menino Jesus olhou para o pinheiro, levantou os braços e sorriu, feliz! Diz a lenda que foi assim que o pinheiro, enfeitado com luzes e uma estrela no topo, foi escolhido com a árvore de Natal.

Os três sorriram e Cuca abraçou Ana, braços pequeninos em redor do pescoço. Quando se voltaram a olhar, teve uma vista privilegiada dos dentinhos pequeninos de peixe, que transformava o semblante angélico da menina albina num pequeno ser perigoso e assustador, que explicava o falatório do povo, e então riu ainda mais.

Aquele era um instante perfeito, Ana Vaz estava tão feliz quanto era possível estar-se. Tal como acontece a muitos de nós em tais momentos de pura felicidade, ela distraiu-se e caiu na armadilha que é o pensamento. Era efémero, aquele momento, tal como sempre era a felicidade.

Foi apenas por um instante, este tropeção de Ana, distraída da felicidade presente pelos seus receios sobre o futuro, mas a Baltazar, sempre vigilante do brilho nos olhos negros, não lhe passou despercebida o reflexo de tristeza. Sem perder tempo, ele chamou a atenção das crianças para si com um assobio longo. Aquele momento junto à árvore e a lenda contada por Ana às duas crianças, deu-lhe uma ideia para tornar realidade o desejo dela, numa tradição contrária ao próprio calendário: tornar aquele dia o mais longo do ano.

— Quem quer ouvir uma história?  

Ele era bibliotecário, escritor, e sabia o efeito daquelas palavras. A jovem Catalina conhecia-as melhor do que ninguém, foi com elas que a encantou na pequena biblioteca itinerante com que invadiu aquele vilarejo, espalhando livros por toda a parte.

As corridas desviaram-se na direção de Baltazar, umas atrás das outras, as crianças acotovelaram-se de volta aos lugares nos dois bancos corridos que ladeavam a grande mesa de madeira, agora com mais pratos vazios do que cheios, nenhum deles por provar. Ombro com ombro, esgotaram o espaço, depois sentaram-se pelo chão junto à lareira, a pequena Cuca ao colo de Ana, os três irmãos Marcolino num trio de espelhos em escadinha, Mata-Mata fingindo-se desinteressado, Rosarinha aproveitando para ajeitar o cabelo do filho quando Zé Mau e Barbicha abandonaram por fim a sua vigia, e também eles encontraram um lugar no chão. Juntou-se o silêncio, o pequeno Badé ainda saltitava à procura de um lugar especial. Todos tinham os olhos postos no homem de pele negra, que abria um grande livro de contos de Natal, quando a magia chegou numa nova historia ao som da voz de Baltazar. 


Feliz Natal!

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