Gabriel Garcia Marquez disse, na frase de abertura do primeiro volume da sua obra autobiográfica intitulada “Viver para contá-la”:
“A vida não é aquela que se viveu, é a que recordamos, e como a recordamos para contá-la.”
É a maior das histórias!
A Vida, a nossa, em que somos a personagem principal (ou deveríamos ser) a narrativa pessoal que começamos a criar desde a primeira memória, a história dos outros (ou sobre os outros), tudo o que vamos vivendo e compondo e continuando a editar em permanência.
E se assim é, não nos torna a todos uns contadores de histórias?
Há com certeza uma grande diferença entre nós e Gabriel Garcia Marquez, bem sabemos, usar a palavra para bem-contar uma história é uma arte que poucos conseguem aperfeiçoar com mestria de grande escritor, mas aquela magia de “contá-la no nosso silêncio”, quando falamos de nós para nós, naquele cantinho secreto dentro da nossa cabeça onde vale tudo, é uma questão de sobrevivência!
Quantas vezes tivemos de recorrer à nossa criatividade para tornar um momento terrível da nossa vida numa comédia? Talvez uma comédia negra, mas uma reivenção da realidade para não nos deixarmos vencer por circunstâncias ou perder a fé na humanidade de uma vez por todas.
Tu sabes bem do que estou a falar. Já todos nós passamos por lá.
Reinventamos e inventamos! Porque há tanto que não se sabe e que se tem de preencher para que a nossa história continue a fazer sentido… na direção que bem queremos, claro está!
Conhecemos uma pessoa pela primeira vez, inventamos-lhes toda uma personalidade, atribuimos-lhe um lugar na nossa história, o lugar da personagem que nos convém, claro está! Até mesmo com quem nos é mais próximo:
- os nossos pais (que obviamente são os culpados de traumas, vícios e paranóias, a origem de todos os nossos problemas estruturais)
- maridos, mulheres, namorados e namoradas (que mesmo depois de décadas de vida em comum, camas e casas de banho partilhadas, certo dia olhamos para o lado e: “quem raio é este ser que se atreve a respirar do mesmo ar que eu?”)
- Filhos (que eu não tenho) mas que quem os traz ao mundo e os vê crescer atentamente dia após dia, certo jantar se sentam à mesa e dizem que já não gostam do cabrito assado que levou dois dias a preparar e que até então era o seu prato favorito, porque afinal são vegetarianos.
Bem já estou a divagar e ainda não falei do livro que é a causa desta conversa toda.
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Amor & C.ª de Julian Barnes, é um daqueles livros que tenho na estante há anos de se perder a conta, porque eu sou uma grande fã do Julian Barnes e este faz parte daquela prateleira especial da estante que tem livros que eu sei que vou adorar e o espírito de formiga que vive em mim desde que aprendi a “guardar coisas para um dia” ali os deixa, à minha espera para quando mais preciso.
E eu nunca precisei tanto como neste último mês!
Em Amor & C.ª conhecemos 3 amigos, o Oliver, o Stuart e a Gillian. O Oliver e o Stuart são melhores amigos desde o tempo da escola, não poderiam ser mais diferentes O Stuart é ponderado e introvertido, o Oliver excêntrico e extrovertido, a Gillian surge na vida dos dois quando conhece o Stuart e se casa com ele. Tudo ótimo, se não fosse o pormenor de que, no dia do casamento, o Oliver se apercebe de que está apaixonado pela Gillian que é agora mulher do seu melhor amigo.
Apesar de uma história de amor rocambolesca não ser exatamente o que o médico me recomendaria, um bom escritor sabe como reiventar a roda e Julian Barnes reiventa a roda neste livro porque estas três personagens são qualquer coisa que não se esquece e o que mais me está a cativar (sim, porque ainda não terminei de o ler mas tinha de falar sobre isto para conseguir dormir hoje) o que mais me fez abrandar a passagem das páginas é a simplicidade genial desta história, que é narrada pelos três, não no típico formato 1 capítulo por personagem, mas antes numa alternância sem regras, por vezes são várias páginas, por vezes são poucos parágrafos, e os três, Oliver, o Stuart e a Gillian falam quase exclusivamente uns dos outros, e relatam mais ou menos as mesmas coisas, os mesmos acontecimentos e são histórias diferentes, cada um tem a sua história.
E foi esta magia tão simples que ficou comigo, este exercício que todos fazemos, ao contar as nossas próprias histórias, as nossas narrativas pessoais, tão singulares, tão egocêntricas e descontextualizadas.
É que ao ouvir estas três personagens, apercebemo-nos de que existem tantos ângulos mortos quando nos olhamos, se nos olhamos ao espelho, uns aos outros, mesmo olhos nos olhos, não importa o quão próximos, há todo um mundo privado em cada uma das histórias que inventamos.
Entre o editar o nosso passado e alucinar com o futuro, somos realmente todos como contadores de histórias a tempo inteiro! Aliás, não é por acaso que é necessário fazer meditação para nos ancorar por cinco minutos que sejam. Porque nós, oh mente mais inquieta que mar turbulento. Não paramos! Porque é a mais importante das histórias, a nossa, a mover-se à velocidade do mundo, qualquer coisa como 100km/h, diz o Google.
2023 está a ser o ano mais louco da minha vida, tudo me tem acontecido! Vida pessoal, profissional, social, literária, coisas boas, coisas más, mal tenho conseguido acompanhar.
Sabes aquela brincadeira parva que fazíamos em pequenos, em que rodopiávamos cada vez mais rápido para parar de repente e sentir aquela vertigem em que o mundo continuava a rodar e o desafio era só aguentar sem cair, é o meu ano de 2023.
A boa notícia: ainda não caí para o lado e o mundo parece finalmente começar a abrandar.
Isto tudo para dizer que a GRANDE história é sempre composta de várias histórias, vários capítulos e se em algumas alturas tudo começa a gritar “plot twist” a cada quinze dias, é normal que possas ter um colapso nervoso no meio do supermercado só porque não consegues encontrar o carrinho com a meia dúzia de produtos das compras que andas a fazer há uma hora.
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“És a tua própria história e por isso és livre para imaginar e experienciar o que significa ser humano.”
Disse Toni Morrison, Nobel da Literatura, autora de “Beloved” e “O Olhar Mais Azul” num discurso que deu a alunos finalistas do Wellesley College em 2004.
E continua dizendo:
“E embora não tenhas controlo absoluto sobre a narrativa (nenhum autor o têm, asseguro-te) podes ainda assim criá-la.
Embora nunca conheças na totalidade as personagens que surgem ou desestabilizam o teu enredo, nem consigas manipulá-las, poderás respeitar aquelas que conheces dando-lhes atenção e respeitando-as. O tema que escolhes pode mudar ou simplesmente iludir-te, mas seres a tua própria história significa que podes sempre definir o seu tom. Também quer dizer que podes inventar a linguagem para dizer quem és e qual o teu propósito. Mas, eu sou uma contadora de histórias e por isso uma otimista…”
confessa Toni Morrison…
“...alguém que acredita na ética do coração humano, alguém que acredita que a mente se repulsa perante a fraude, ávida pela verdade, sou alguém que acredita na ferocidade da beleza. Por isso, do meu ponto de vista, que é aquele de uma contadora de histórias, já vejo as vossas vidas como vidas cheias de arte, preparadas, apenas à espera que a tornem uma arte.”
É um discurso muito bom de se ouvir, aqui tens o link para poderes ouvi-lo na íntegra.
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Passamos muito tempo a construir a nossa história, a que dá sentido à nossa vida, nos dá uma identidade, nos faz levantar todas as manhãs.
Em alguns momentos, como o meu 2023, as coisas mudam e obrigam a repensar todo o enredo, porque por mais que se queira, por mais amor que se tenha a esta nossa GRANDE história, às vezes, torna-se impossível mantê-la.
É preciso tempo. Os livros, como sempre, ajudam, como os melhores companheiros, os silenciosos.
Somos todos aprendizes nesta arte que é a criação contínua da nossa narrativa pessoal. Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Quem nos acompanha?
Vivemos, conversamos, conhecemo-nos, escrevemos, criam-se livros.
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