Carlos Ruiz Zafón conquistou o mundo com a sua saga “O Cemitério dos Livros Esquecidos”, uma misteriosa teia literária magnífica que tem como cenário Barcelona de finais do século XX.
Começa com o seu livro mais popular “A Sombra do Vento”, uma metáfora de memória, de sentimentos e da natureza humana… como não poderia deixar de ser, nos seus expoentes.
Tornou-se no escritor espanhol contemporâneo mais lido em todo o mundo e com mais de 30 anos de ofício literário muito me ensinou ele sobre esta mania de escrever histórias.
Com Carlos Ruiz Zafón, aprendi que:
A linguagem é uma forma de música
Uma cidade também pode ser uma personagem
E que:
Manter a ilusão da simplicidade é o maior dos trabalhos
Bem-vindo a este novo episódio!
Um livro esquecido, é um sentimento de tristeza.
Pelas mais variadas razões, há livros que acabam perdidos no tempo… vítimas de injustiças, de censura, daquela indiferença criada pela simples passagem do tempo.
Eu acredito que é esta, chamemos-lhe, tristeza nostálgica por livros esquecidos, uma das razões pelas quais nós, aficionados da leitura, tanto gostamos de passar horas a deambular por livrarias, a percorrer estantes, a explorar com especial dedicação e afinco lojas de livros usados à procura de… não sabemos bem qual livro, mas, sabemos que quando o virmos vamos reconhecê-lo.
Não resistimos à oportunidade de resgatar um livro esquecido.
Na sua tetralogia “O Cemitério dos Livros Esquecidos”, Carlos Ruiz Zafon relembra-nos deste sentimento, destes livros esquecidos, mas não só.
É uma série de quatro livros BRILHANTES, uma combinação de mestre da melhor escrita literária com o fascínio hipnótico dos melhores thrillers policiais que resulta numa teia labiríntica na qual entramos para encontrar livros esquecidos, pessoas esquecidas, memórias esquecidas, amores, ódios, heróis, vilões, novos amigos e velhos inimigos.
Começa com “A Sombra do Vento”, e digo “começa” apenas porque sigo a cronologia das datas de publicação. Esta saga é livre! Os livros não têm uma ordem de leitura obrigatória e por isso cada um de nós pode lê-los como bem entender.
“A Sombra do Vento” começa com uma memória de infância de Daniel Sempere, o personagem principal, numa manhã de 1945 em que o seu pai o leva a conhecer um lugar secreto, um lugar que só os apaixonados por livros, puros de coração, tem o privilégio de saber da sua existência. Assim descobrimos com Daniel o cemitério dos livros esquecidos, um lugar inacreditável, um labirinto que guarda todos os livros. Quem lá entra pela primeira vez, pode escolher um entre milhões, que deverá depois guardar e proteger durante toda a sua vida. É no momento em que escolhe um livro de Julian Carax, um escritor misterioso, talvez maldito, talvez amaldiçoado, que começa uma intriga apaixonante de segredos enterrados numa Barcelona muito diferente da que conhecemos hoje.
E nos deixa com a dúvida: somos nós que escolhemos os livros? Ou são eles que nos escolhem a nós?
Seguiu-se “O Jogo do Anjo” publicado sete anos depois, em 2008.
Numa mansão abandonada, David Martin, um jovem escritor, escreve romances sensacionalistas para ganhar a vida. Depois de sobreviver uma infância conturbada, ele encontrou no mundo dos livros um refúgio e passa as suas noites a arquitetar histórias que… talvez… não sejam tão estranhas como parecem, porque, algures naquela mansão abandonada onde ele vive, existe um quarto que ele mantém fechado, e que se intuiu, se relaciona, de alguma forma, com a morte misteriosa do seu antigo dono e todo o mistério começa a consumi-lo como um veneno.
É neste desespero lento que David recebe uma carta de um editor francês que lhe faz uma proposta irrecusável: ele deve escrever um livro único, poderoso, diferente de qualquer outro, que contenha em si o poder de transformar corações e mentes, em troca, ele receberá uma fortuna, e talvez mais ainda.
Ao responder ao desafio, como é de esperar, David apercebe-se de que existe uma ligação entre o seu livro assombrado e as sombras que rodeiam a mansão.
No terceiro livro “O Prisioneiro do Céu” reencontramos Daniel Sempere e Fermin (uma das minhas personagens favoritas, e que acredito também o seja de muitos outros leitores).
Tudo corria bem na vida das personagens que conhecemos no primeiro livro, A Sombra do Vento, até que deixa de correr bem quando entra na livraria Sempere e Filhos um misterioso homem que ameaça divulgar um terrível segredo que tem estado enterrado há duas décadas no passado misteriosa da cidade de Barcelona. O surgimento deste homem leva Daniel e Fermín para mais uma aventura, perigosa e sinistra, pois claro, num vislumbre dos anos 40 e dos primeiros anos da ditadura Franquista.
E por fim “O Labirinto dos Espíritos", este quarto livro que concluiu a saga e que Zafon definiu como “a peça final de um relógio gigante em que tudo se encaixa”. Ele vem completar o labirinto extraordinário que ao longo dos anos os leitores foram entrando, por diferentes livros, ou portas, como lhes chamou Zafon, dependendo de qual a ordem de leitura, explorando em cada um o amor pelos livros, de leitores, escritores, livreiros, editores… uma Barcelona gótica e literária dos finais do sec XX, diferentes formas e ângulos de uma mesma grande história, construindo uma experiência de leitura diversa deste universo recheado de mistérios e aventuras.
“O Labirinto dos Espíritos" este último livro que serve como chave-mestra para toda a saga, e que… ainda não li… porque, tal como todos de nós que nos vimos apaixonados por um escritor e fascinados por uma saga, estou a guardá-lo como uma formiga com medo do inverno.
Está aqui, e gosto de saber que continua à minha espera, não só porque será um último reencontro com as personagens que tanto estimo nesta série, mas também porque, como se sabe, inesperadamente acabou por ser o último livro que Carlos Ruiz Zafon publicou em vida.
Ele faleceu em 2020, vítima de cancro.
Carlos Ruiz Zafon disse:
“As histórias.. não se trata daquilo que pensamos que elas são, as histórias são a forma como as contamos”
Foram 16 anos dedicados a escrever esta série, e confessou em entrevista que o principal desafio foi conseguir manter a ilusão da simplicidade, manter oculta toda a complexidade e engenho destas histórias para permitir que o leitor desfrute delas numa “experiência de leitura fluída como água”, descreve ele, “permitir que o leitor absorva todo um universo sem parar para pensar na matemática e engenharia necessárias para o suportar”.
Todo o desafio da escrita é uma luta individual, disse Zafón, o escritor contra si próprio, a desafiar as suas capacidades. Não há mais ninguém neste desafio constante de escrever, ninguém nos consegue ajudar a criar mundos novos através das palavras… a criar uma luz num cenário, um suspiro, um sentimento nas personagens. Tudo isto tem de ser criado do zero, apenas com as nossas próprias palavras.
E ele conseguiu criar como nenhum outro! Com a autenticidade característica dos grandes escritores pegou no seu mundo interior pessoal e tornou-o numa história para todos.
Nascido e criado em Barcelona, numa Barcelona que, nas palavras do próprio, “as pessoas que a conheceram nos últimos anos têm a percepção de uma cidade muito divertida e solarenga no mediterrâneo, para onde vão 3 ou 4 dias de férias… mas essa não é a alma de Barcelona, ela é uma cidade antiga com muitos segredos e uma história dramática cheia de camadas, e foi esta a cidade em que cresci e sou produto dela.”
Uma cidade que ele transpôs para os seus livros, não apenas como cenário.
Barcelona é uma das suas muitas personagens, com a sua história, segredos, uma personalidade própria e humores.
Zafon partilha “a sua Barcelona”, só possível de existir na literatura. De tal forma que ele sempre recusou terminantemente a possibilidade de alguma vez vir a ser feita uma adaptação cinematográfica desta saga. Mesmo depois de ter recebido propostas com valores “obscenos”.
Explicou que a sua criação deste mundo do “Cemitério dos livros Esquecidos” é literária e que se o tivesse imaginado numa outra arte, num filme, série televisiva ou peça de teatro, o teria feito como tal originalmente. O mundo que criou, afirma ele, é impossível de ser adaptado, tentar fazê-lo é desvirtuar o seu trabalho.
Ele tinha como hobbie a música, e aprendeu sozinho a tocar piano.
A sua grande frustração, confessa, é não ter tido a oportunidade de desenvolver o seu gosto pela música, não ter uma educação musical que lhe tivesse permitido explorar o seu talento, caso o tivesse.
Via a escrita da mesma perspectiva que via a música, porque a música, disse ele, “é apenas mais uma linguagem” e quando escrevia via-se a si mesmo como “um maestro''.
Pensava nas palavras com cor, timbre, dinâmica… em criar secções e um efeito narrativo, criar tensões, criar ritmo, criar efeitos de luz e escuridão.
Ao escrever uma frase, um parágrafo, pensava em tudo como uma peça de música que tem de contar uma história, mas a sua essência era a forma como se constrói, como se conta essa história, se trabalha a linguagem.
E esta, acreditava Zafon, era uma verdade para qualquer género de escrita. Disse “Se escrevermos de uma forma que faz justiça às personagens, ao mundo, ao universo, à narrativa que queremos transmitir, o que o leitor vai receber é tudo isso, tudo o que a linguagem pode proporcionar."
Linguagem é o elemento mais importante em qualquer criação de escrita.
“Este lugar é um mistério.” Descreveu David Martin, o personagem d’O Jogo do Anjo” quando apresentou o Cemitério dos Livros Esquecidos. “É um santuário. Cada libro, cada volume que vês, tem uma alma. A alma de quem o escreveu, e a alma daqueles que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas paginas, o seu espirito cresce e torna-se forte. Neste lugar dos livros que já ninguém recorda, os livros que se perderam no tempo vivem para sempre, à espera de chegar às mãos de um novo leitor, de um novo espirito…”
Somos nós que escolhemos os livros? Ou eles escolhem-nos a nós?
Somos cativados por capas, encantados por títulos, enfeitiçados por sinopses, seduzidos pelo simples toque do papel e a promessa de uma história inesquecível.
Carlos Ruiz Zafon colocou-nos, a todos, nestas histórias de livros esquecidos e leitores que não desistem de os salvar.
Com ele aprendi que é possível escrever com palavras que são também música, e que se o fizer bem, quando forem lidas estas podem tornar-se feitiços… estas histórias mágicas que todos queremos ler porque sempre acabamos por ver-nos espelhados nelas.
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