Ele é o escritor moçambicano mais traduzido do mundo; vencedor do Prémio Camões em 2013; e diz ser feliz por preguiça, porque dá muito trabalho ser infeliz!
Mia Couto, autor de títulos como “Terra Sonâmbula”, “O Último Voo do Flamingo” e mais recentemente “O Mapeador de Ausências”.
O seu talento é sobejamente conhecido, e foi para mim uma daquelas escolhas óbvias de livro, feita há alguns anos, sem que me recorde particularmente de quando ou onde o comprei, e que permaneceu guardado na minha estante, até que por fim - no momento certo, como acontece com os livros inesquecíveis na nossa vida - comecei a lê-lo.
Neste episódio do podcast, falo-te sobre o livro “Terra Sonâmbula” porque não resisto a partilhar um bocadinho desta obra maravilhosa de Mia Couto, o poeta-escritor que cria histórias "abensonhadas".
Bem-vindo!
“Terra Sonâmbula” é um dos chamados clássicos contemporâneos; livros que pela sua originalidade, estilo de escrita e os mundos que nos dão a conhecer, assumem desde logo uma intemporalidade literária.
E começa assim: com “A Estrada morta”
“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância.”
Mia Couto escreve Terra Sonâmbula numa altura em que a guerra em Moçambique ainda estava presente, e como o próprio referiu em entrevista, apesar de sentir o desejo de falar da guerra, estava convicto de que nunca iria escrever sobre ela, até que surgiu uma necessidade de processar as suas memórias, de encontrar um meio de diálogo com o passado e, em especial, com as pessoas perdidas, as que ficaram presas nele.
O livro tem duas linhas narrativas que se vão alternando:
a primeira: tem como cenário a estrada morta - referida nesta citação que li há pouco - e é nela que seguem o velho Thuair com o pequeno Muidinga e onde os dois encontram um machimbombo, um autocarro queimado, no qual decidem permanecer.
Mia Couto apresenta-nos Thuair e Muidinga assim:
“Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a mesma cor do caminho. O velho se chama Tuahir. É magro, parece ter perdido toda a substância. O jovem se chama Muidinga. Caminha à frente desde que saíra do campo de refugiados. Se nota nele um leve coxear, uma perna demorando mais que o passo. Vestígio da doença que, ainda há pouco, o arrastara quase até à morte. Quem o recolhera fora o velho Tuahir, quando todos outros o haviam abandonado.”
a segunda linha narrativa segue a história de kindzu, escrita nos cadernos encontrados junto ao autocarro queimado, e que o pequeno Muidinga vai lendo ao velho Thuair, para os ajudar a enfrentar a sua situação de desespero.
No primeiro caderno, kindzu começa a contar a sua história:
“Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz. Sou chamado de Kindzu.”
São três, as personagens principais de “Terra Sonâmbula”: o velho Thuair, o pequeno Muidinga e kindzu... de facto inesquecíveis, pela história que vivem, pelas histórias que nos contam, pelo seu desespero compreensível e esperança inexplicável, mas podes ficar seguro de que restam ainda muitas outras personagens para descobrires na leitura deste livro, todas igualmente originais e inesquecíveis.
Terra Sonâmbula retrata a nossa sobrevivência através das histórias, de como elas alicerçam a nossa identidade cultural, e neste livro Mia Couto transforma - com uma mestria inacreditável - transforma o que a poesia tem de mais belo numa forma narrativa melodiosa e cria o seu tão aclamado realismo mágico de histórias "abensonhadas".
Para os privilegiados, como eu, para quem a guerra nunca foi uma realidade, só a imaginamos... com ajuda de documentários, imagens e testemunhos.
Neste espelho de guerra em Terra Sonâmbula - num passado em que Portugal teve o seu papel no que aconteceu em Moçambique, um pedaço sombrio da nossa história, conhecê-la faz também parte de um processo, de lidar com este pedaço de memória coletiva, que mesmo para uma geração que não participou dela, que nem sequer exista então, faz ainda assim, parte de nós.
“O Homem é produção de várias coisas históricas…” diz Mia Couto. “...mas se existe uma essência é esta de produzirmos histórias e de sermos encantados por histórias são essenciais para produzirmos uma visão do mundo dentro dos mundos diferentes que nos são oferecidos”
Como sempre acontece com os bons livros, Terra Sonâmbula aproximou-me desta realidade desconhecida - uma realidade feroz de guerra - pelos olhos de muitos, de personagens que vivem momentos que poderiam parecer quase impossíveis de retratar, mas que a arte de um escritor transforma ao estilo de um sonho, criando para isso até palavras só suas numa escrita com voz de poeta.
Pois é necessária muita mestria de imaginação para não sucumbir a um pesadelo que é real e conseguir usar memórias para criar histórias belas, sem descurar a dor que elas provocaram, nem desrespeitar cicatrizes.
Porque nunca podemos esquecer que é de nós, da nossa memória, que nascem as histórias que temos para contar. E como as contamos? Essa é a arte e a magia com que escritores como Mia Couto nos mostram ser possível de o fazermos e nos inspiram.
Na escrita de ficção salvamo-nos, a todos, guardando o que acreditamos nos tornará melhores, ou aquilo que mais nos serve, neste nosso longo caminho para sermos quem desejamos ser.
Em entrevista, Mia Couto disse:
“Muita gente fica aflita se os meninos não lêem, eu fico muito mais aflito se os meninos não são capazes de criar histórias, isso sim, se são só consumidores das histórias produzidas por outros, isso sim, deixa-me preocupado.”
Eu não poderia estar mais de acordo: sim, temos de ouvir as histórias dos outros, e saber como bem-contar as nossas.
Ao ler Mia Couto aprendi que apesar de estarmos presos a uma linearidade no mundo real, ela não precisa de existir no processo de escrita, quando criamos as nossas histórias.
Ele partilha que:
“A certa altura apetece-me surpreender-me a mim próprio e ter uma relação com a escrita que pode ser alguma coisa que não sei bem o que é”
Na sua experiência de mais de 30 livros publicados, ele foi aprendendo que um livro não pode ser demasiado escrito, explicado, rebuscado, excessivo… diz: “Estou mais à vontade com o erro.”
Há que aprender também isto com ele.
Então, vamos tentar fazer como Mia Couto:
Respeitar as nossas memórias, até as que gostaríamos de esquecer, e transformá-las em histórias
Contar essas histórias com a voz e coração dos poetas
Ter coragem de fazer diferente, mesmo quando não seja necessário ousar
Aprender a estar cada vez mais à vontade com o erro
Ah, e não esquecer de ser feliz… porque dá muito trabalho ser infeliz…
Entrevistas a Mia Couto:
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